(Vamos começar pelo fim para assim tentarmos entender quando isso tudo começou. Quero falar sobre este texto - o mais recente escrito por mim até agora e provavelmente o último que eu venha a escrever - sendo ele o que mais gosto, mesmo tendo sido o mais execrado...)
Fiquei ali por um bom tempo, acho que ainda tinha um sol fraco quando cheguei, mas agora tudo o que percebia era uma noite escura que vinha engolindo as pessoas e coisas da rua onde eu estava, até porque logo à minha frente caído no chão tinha um saco vazio de algum produto que não reconheci, e a pouca claridade que restava vagamente me deixava ler entre os vincos e dobras que a posição lhe dava algo que deveria ser seu rótulo, mas que para mim soava algo como uma ironia branda que o destino me sinalizava, aquelas letras quase infantis com seu azul intenso me deixando ler somente uma palavra: Amor.
Enquanto brincava um pouco com a idéia do que poderia ter habitado aquela embalagem plástica de pretensões um tanto exageradas e confuso para julgar entre imagens de preservativos, amaciantes ou talvez de algum alimento qual seria a mais provável, perdia-me nesses pensamentos quando a vi cruzando a esquina e se precipitando em minha direção, o que me fez perder o fôlego e, da tossida que veio em consequência, cuspir longe o cigarro que após aquelas várias horas de vigília possivelmente deveria ser um dos últimos do maço em meu bolso.
Não me preocupei de procurar a bituca naquela parte mal iluminada da rua, pois sem me dar conta do que fazia, iniciei passos rumo a ela, agora apenas me perguntando o que realmente iria dizer àquela mulher que nem os vários pacotes e sacolas que segurava ou mesmo os dois longos anos que separavam nosso último encontro, me punham qualquer dúvida de que ali por aquela rua de paralelepípedos irregulares e casas de aspecto decadente, vinha a garota que tanto havia amado um dia.
Pouco andei até nos aproximarmos, talvez pela sua pressa ou mesmo pela fraqueza que minhas pernas subitamente adquiriram, mas o fato é que estava eu de frente à ela e, naquela fração de segundos que levou para me reconhecer, pude reviver na minha cabeça tudo, desde o dia em que nos esbarramos pelo corredor daquele escritório, também carinhosamente relembrando os vários lugares que visitamos e que até passamos a frequentar assiduamente após oficializarmos nossa relação, até o fatídico dia naquele mesmo lugar onde nos conhecemos, então somente para ela me dizer que não queria me ver nunca mais.
Pareceu ter sensação semelhante, pois mesmo quando sua boca pronunciava meu nome num diminutivo familiar e único, ainda sim pude notar quão trêmulo saiu daqueles lábios muito vermelhos um só sussurro - Claudinho... Era a mesma Solange com seus longos e lisos cabelos morenos quem eu tinha à minha frente, mas essa constatação não me permitiu nada mais ousado do que um tímido "olá", enquanto mantinha com quase nenhuma convicção minha mão estendida à espera da dela.
Criando coragem para novamente encará-la pude notar seus conhecidos olhos hipnotizantes e a maquiagem sutil que tantas vezes me deixaram admirado pela força que emanava daquele rosto delicado. Foi ela quem tomou a iniciativa e quando percebi já estávamos envoltos numa daquelas conversas banais tipo "como vai?", "há quanto tempo, hein?" e etc, mas por pouco tempo, logo ficando ambos de novo em silêncio, quando então recobrei o raciocínio que a perturbação crescente em minha mente me tinha negado e assim, de uma só vez, falei tudo o que estava engasgado na garganta desde nossa separação, sendo que Solange nada disse naqueles vários minutos em que abri meu coração para ela.
Parei de falar quando a emoção já havia me deixado exausto, e pude então notar uma única lágrima que subitamente surgiu num daqueles olhos brilhantes, anunciando o rompimento de algo certamente represado por muito tempo, tal foi a inundação em sua face e depois em minha camisa, quando senti sua cabeça vir de encontro ao meu peito, abafando os gritos loucos de meu coração aí já num desvairado tum, tum, tum, tum, tum.
***
Pouco a pouco a vejo tornar-se menor a cada passo que dá distanciando-se de mim rumo ao seu destino original, assim caminho para o outro lado tentando não deixar fragmentar-se em minha memória tudo o que Solange me disse naqueles minutos últimos, isso ainda mantendo a mesma expressão perplexa que adquiri enquanto a ouvia pedir por entre soluços que a perdoasse pois, disse ela, a verdade é que me amava muito, muito ainda, e que estivera a ponto de enlouquecer devido minha ausência súbita desde nossa separação.
Confessou que tentou assumir um relacionamento com uma pessoa que ainda agora vivia com ela, mas que este tinha se tornado insuportável, por culpa exclusiva dela e de seus indissolúveis sentimentos por mim. Falou e chorou alternadamente até nossa despedida e, enquanto ia desaparecendo na distância, minha visão incomodamente embaçada conseguiu perceber seu vulto que se virava para me acenar uma última vez e me dizer num tom de voz cuja esperança só aumentou minha tristeza ao ouvir um longínquo "até amanhã, meu amor..."
Caminho de volta até aquele ponto conhecido onde posso ver em cima de um velho muro pichado um gato todo sujo à entoar uma canção solitária só a ele compreensível. Paro e me encosto no mesmo poste de horas atrás; um suor frio percorre meu corpo enquanto vou me abaixando lentamente, para logo me largar sentado no chão frio da calçada quando finalmente explode uma onda de náuseas que me fazem curvar e apertar o ventre que queima por dentro. Ergo a cabeça quando ouço os passos de alguém, mas a pessoa que passa por mim não me deixa ver seu rosto talvez enojado com o pressuposto bêbado ali caído, sendo assim fico apenas com o som familiar de uma música antiga que sai de seu radinho portátil, e mais uma vez a tristeza me acaricia quando me lembro haver chamado Solange de cafona por gostar daquele mesmo estilo musical...tantos erros, dizer o que não devia mas não falar o mais necessário na ocasião certa: me despedir, por exemplo.
Mas já não há mais tempo.
Começo a chorar e o pouco de consciência que me resta não me dá capacidade de assimilar bem o que está acontecendo, apenas respiro com bastante dificuldade e enquanto me apoio com uma das mãos no piso áspero, noto mais uma vez aquele mesmo saco agora bem próximo de meu rosto, cujas lágrimas fluindo junto com o fio de sangue que escorre de minha boca borram indiscriminadamente aquele amor todo escrito em azul.
Ao longe posso ainda ouvir a voz do famoso intérprete emocionada á cantar: "...que o tempo pode afastar nós dois..". Na outra mão, que há pouco colocara no bolso interno de minha jaqueta, vejo de relance no frasco que ela segura a palavra "veneno", e aí então desfaleço.