segunda-feira, 10 de maio de 2021

Achados e perdidos

     Era uma tarde de sexta-feira, garoava e estava também fria e morta como convém a todas histórias tristes.

     Saí de casa para a minha caminhada diária pois não havia nada melhor para fazer mesmo - almoçar com a família estava fora de cogitação pois a bem poucas semanas um divórcio sofridamente consumado me tirara tal direito básico.

Lembrei do dia das mães que ocorreria no final de semana que já apontava, pensei com carinho na minha mãe que pelo 5º ano ausente desde seu falecimento não me daria o prazer de estar na sua presença mas numa rápida mudança de humor, alegre concluí que por outro lado a mãe das minhas filhas não necessitaria de qualquer atenção da minha parte.

Isso me aqueceu e assim abri um grande sorriso... e nessa hora senti algo diferente nos músculos da face que, apesar de inicialmente traduzir isso como um momento de liberdade ante as opressões do mundo, logo percebi sua verdade aterradora: apesar do zelo em ter me lembrado e assim trazido desnecessariamente o guarda-chuva para aquela inexpressiva cortina molhada, tinha por infelicidade me esquecido da minha máscara protetora para aquela pandemia que atrasada chegara para nos receber neste novo século!

Após um tempo parado pela perplexidade desanimada que me envolvera, a contragosto dei meia volta e chegando em casa logo encontrei ali numa mesinha ao canto a máscara tão necessária quanto indesejada e enquanto isso apenas pensava com tristeza no sorriso que havia possivelmente perdido para sempre naquele caminho.


domingo, 6 de setembro de 2009

20 Anos

Atravessou a rua sem nem ao menos se preocupar com os carros que passavam… Ora, parecia improvável que eles viessem a lhe dar atenção quando ninguém mais o fazia. Malditos automóveis.

Passou pela banca na esquina onde jornais estendidos competiam pela atenção dos transeuntes mostrando desde a intervenção militar na Argélia até os terremotos recentes na China. Mais do mesmo.

Olhou para o relógio e pensou que deveria ter saído de casa mais cedo, assim chegaria ao ponto de encontro antes da Marisa pois ela detestava atrasos que não fossem os dela. Mulheres...

Parou defronte a uma marquise muito alta, de mármore e metal cujo vulto parecia fitar o infinito (ou, mais provavelmente, algo cuja própria finitude já há muito a engolira e que então apenas ecoava, ausente).

Trocou de faixa no MP3 Player, passando do blues melancólico para algo mais agitado, um rock “indie” recente que havia baixado e que o ajudaria a levantar seu ânimo. Isso veio em boa hora já que logo ali vinha radiante sua bela namorada com seus cabelos esvoaçando e refletindo em seus fios loiros o sol do verão quente que já se pronunciava.

Achou melhor deixar a tristeza para outra ocasião.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Uma mulher que me ensine o tango

Alguém que se atrevesse a passar defronte a pensão daquela rua coberta pela neve vespertina perceberia o vulto visível na janela, sua silhueta esguia tão próxima realçando o contorno dos seios e ancas dando assim a certeza para este anônimo voyeur tratar-se de alguém bastante jovem.

Marie, ainda nua, pega da mesinha onde repousa um excêntrico abatjour todo estampado com o contorno de rosas, um maço de gitanes e saca um cigarrette escuro que logo acende e do qual puxa uma longa tragada enquanto seu olhar se perde na melancólica paisagem de Paris naquele inverno frio.

- Assim que eu conseguir o visto parto daqui e nunca mais volto... - fala para si mesma a jovem brunette defronte ao espelho escovando com uma mão distraidamente seus longos cabelos enquanto com a outra ajeita o roupão recém colocado - aquele salaud, ele vai ver só!

Perde-se em pensamentos enquanto a paisagem pela janela aos poucos se transforma numa manhã brilhante pelos raios do sol que surgem naquele instante e que soam para Marie como uma confirmação que tudo realmente ia dar certo.
(...continua)

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Alegria, alegria... (chegou 2009)

domingo, 16 de novembro de 2008

Era uma Casa Verde e Rosa

Era uma casa algo assim não tão engraçada, Não havia vida, não havia nada. Podia-se entrar nela mais era em vão, Porque na casa só solidão. Ninguém podia armar uma rede, Com o risco do sono eterno que o envolvesse. E nem ao menos esquecer-se ali, pois velhos fantasmas vagavam junto a ti. Mas era feita com muito esmero, Lá ainda vivo e assim a morte espero.

domingo, 27 de janeiro de 2008

Micro-Conto Macro-Amor

Sim, como alguns, um dia amei. Mas a mulher dos meus sonhos morreu quando acordei.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

Minhas Apresentações (ou: começar de novo...)

Casa nova, é hora de empurrar as caixas de lado, passar uma vassoura no chão e por uma toalha na mesa que o café já está saindo, passado no coador de pano... Pois é, queria ver como é que ficaria minha coleção de textos velhos aqui no "layout" do Blogger, velho conhecido de uns anos atrás quando fomos sumariamente despejados, eu e meus trastes literários, por forças de$conhecida$ que impunham nova$ regras naquela coisa nova que era o fenômeno BLOG.
Fiquei pulando de site em site por algum tempo, enquanto relacionamentos iam e se desfaziam, amizades se rompiam e se fortaleciam na ausência (e na saudade) e meus cabelos brancos me diziam apenas que tudo bem, as coisas ainda iriam melhorar.
Então cá estou, grato pelos olhares gentis e palavras de conforto que recebo agora, mesmo diante do enorme salto que volto a praticar e do esforço que decorrerá deste ato, de muita fé e coragem, senão pela minha vontade em quebrar o silêncio, mas ao menos para acompanhar o coro dos que aplaudem o espetáculo que é essa vida louca.

Ricardo

quinta-feira, 16 de novembro de 2006

Amor Escrito em Azul

(Vamos começar pelo fim para assim tentarmos entender quando isso tudo começou. Quero falar sobre este texto - o mais recente escrito por mim até agora e provavelmente o último que eu venha a escrever - sendo ele o que mais gosto, mesmo tendo sido o mais execrado...)


Fiquei ali por um bom tempo, acho que ainda tinha um sol fraco quando cheguei, mas agora tudo o que percebia era uma noite escura que vinha engolindo as pessoas e coisas da rua onde eu estava, até porque logo à minha frente caído no chão tinha um saco vazio de algum produto que não reconheci, e a pouca claridade que restava vagamente me deixava ler entre os vincos e dobras que a posição lhe dava algo que deveria ser seu rótulo, mas que para mim soava algo como uma ironia branda que o destino me sinalizava, aquelas letras quase infantis com seu azul intenso me deixando ler somente uma palavra: Amor.

Enquanto brincava um pouco com a idéia do que poderia ter habitado aquela embalagem plástica de pretensões um tanto exageradas e confuso para julgar entre imagens de preservativos, amaciantes ou talvez de algum alimento qual seria a mais provável, perdia-me nesses pensamentos quando a vi cruzando a esquina e se precipitando em minha direção, o que me fez perder o fôlego e, da tossida que veio em consequência, cuspir longe o cigarro que após aquelas várias horas de vigília possivelmente deveria ser um dos últimos do maço em meu bolso.
Não me preocupei de procurar a bituca naquela parte mal iluminada da rua, pois sem me dar conta do que fazia, iniciei passos rumo a ela, agora apenas me perguntando o que realmente iria dizer àquela mulher que nem os vários pacotes e sacolas que segurava ou mesmo os dois longos anos que separavam nosso último encontro, me punham qualquer dúvida de que ali por aquela rua de paralelepípedos irregulares e casas de aspecto decadente, vinha a garota que tanto havia amado um dia.

Pouco andei até nos aproximarmos, talvez pela sua pressa ou mesmo pela fraqueza que minhas pernas subitamente adquiriram, mas o fato é que estava eu de frente à ela e, naquela fração de segundos que levou para me reconhecer, pude reviver na minha cabeça tudo, desde o dia em que nos esbarramos pelo corredor daquele escritório, também carinhosamente relembrando os vários lugares que visitamos e que até passamos a frequentar assiduamente após oficializarmos nossa relação, até o fatídico dia naquele mesmo lugar onde nos conhecemos, então somente para ela me dizer que não queria me ver nunca mais.

Pareceu ter sensação semelhante, pois mesmo quando sua boca pronunciava meu nome num diminutivo familiar e único, ainda sim pude notar quão trêmulo saiu daqueles lábios muito vermelhos um só sussurro - Claudinho... Era a mesma Solange com seus longos e lisos cabelos morenos quem eu tinha à minha frente, mas essa constatação não me permitiu nada mais ousado do que um tímido "olá", enquanto mantinha com quase nenhuma convicção minha mão estendida à espera da dela.

Criando coragem para novamente encará-la pude notar seus conhecidos olhos hipnotizantes e a maquiagem sutil que tantas vezes me deixaram admirado pela força que emanava daquele rosto delicado. Foi ela quem tomou a iniciativa e quando percebi já estávamos envoltos numa daquelas conversas banais tipo "como vai?", "há quanto tempo, hein?" e etc, mas por pouco tempo, logo ficando ambos de novo em silêncio, quando então recobrei o raciocínio que a perturbação crescente em minha mente me tinha negado e assim, de uma só vez, falei tudo o que estava engasgado na garganta desde nossa separação, sendo que Solange nada disse naqueles vários minutos em que abri meu coração para ela.

Parei de falar quando a emoção já havia me deixado exausto, e pude então notar uma única lágrima que subitamente surgiu num daqueles olhos brilhantes, anunciando o rompimento de algo certamente represado por muito tempo, tal foi a inundação em sua face e depois em minha camisa, quando senti sua cabeça vir de encontro ao meu peito, abafando os gritos loucos de meu coração aí já num desvairado tum, tum, tum, tum, tum.
***

Pouco a pouco a vejo tornar-se menor a cada passo que dá distanciando-se de mim rumo ao seu destino original, assim caminho para o outro lado tentando não deixar fragmentar-se em minha memória tudo o que Solange me disse naqueles minutos últimos, isso ainda mantendo a mesma expressão perplexa que adquiri enquanto a ouvia pedir por entre soluços que a perdoasse pois, disse ela, a verdade é que me amava muito, muito ainda, e que estivera a ponto de enlouquecer devido minha ausência súbita desde nossa separação.
Confessou que tentou assumir um relacionamento com uma pessoa que ainda agora vivia com ela, mas que este tinha se tornado insuportável, por culpa exclusiva dela e de seus indissolúveis sentimentos por mim. Falou e chorou alternadamente até nossa despedida e, enquanto ia desaparecendo na distância, minha visão incomodamente embaçada conseguiu perceber seu vulto que se virava para me acenar uma última vez e me dizer num tom de voz cuja esperança só aumentou minha tristeza ao ouvir um longínquo "até amanhã, meu amor..."

Caminho de volta até aquele ponto conhecido onde posso ver em cima de um velho muro pichado um gato todo sujo à entoar uma canção solitária só a ele compreensível. Paro e me encosto no mesmo poste de horas atrás; um suor frio percorre meu corpo enquanto vou me abaixando lentamente, para logo me largar sentado no chão frio da calçada quando finalmente explode uma onda de náuseas que me fazem curvar e apertar o ventre que queima por dentro. Ergo a cabeça quando ouço os passos de alguém, mas a pessoa que passa por mim não me deixa ver seu rosto talvez enojado com o pressuposto bêbado ali caído, sendo assim fico apenas com o som familiar de uma música antiga que sai de seu radinho portátil, e mais uma vez a tristeza me acaricia quando me lembro haver chamado Solange de cafona por gostar daquele mesmo estilo musical...tantos erros, dizer o que não devia mas não falar o mais necessário na ocasião certa: me despedir, por exemplo.
Mas já não há mais tempo.

Começo a chorar e o pouco de consciência que me resta não me dá capacidade de assimilar bem o que está acontecendo, apenas respiro com bastante dificuldade e enquanto me apoio com uma das mãos no piso áspero, noto mais uma vez aquele mesmo saco agora bem próximo de meu rosto, cujas lágrimas fluindo junto com o fio de sangue que escorre de minha boca borram indiscriminadamente aquele amor todo escrito em azul.
Ao longe posso ainda ouvir a voz do famoso intérprete emocionada á cantar: "...que o tempo pode afastar nós dois..". Na outra mão, que há pouco colocara no bolso interno de minha jaqueta, vejo de relance no frasco que ela segura a palavra "veneno", e aí então desfaleço.

quinta-feira, 29 de junho de 2006

A Questão

Um belo dia percebi como eu era sozinho.

Saí caminhando e às mulheres que pelas ruas ia encontrando,
Jovens ou velhas, feias ou belas, ia eu pedindo-lhes a atenção,
E olhos-nos-olhos apenas uma questão fazia.
Pegava em suas mãos e então dizia:

- É você?

Diante das negativas, não fiquei acuado,
Pelo contrário, assim mais ficava eu motivado
Ora, algo elas sabiam, e a julgar o silêncio
Deveria ser algo que lhes causava medo
Ou mesmo inveja e até mesmo respeito.

Segui adiante, passaram-se os dias.
"Serei eu só entre os pares?" - era a dúvida que crescia.
Tomei coragem, mudei meus passos.
Tentei novas formas de fazer contato.

E assim, na tv e nos jornais.
Não se falava de outro fato
Uns que me consideravam anormal
E da benção de outros era eu grato.

E o mundo veio a conhecer,
Atípico ser que vivia,
Só, seja dia, noite, amanhecer.
Sem carinho, atenção, alegria.

Mas vejam vocês, não me senti repelido.
Nem me considerei infortunado,
Podia ser, ou não ser, tão querido.
Sem, no entanto estar abandonado.

E então algo mudou em minha vida.
Na verdade alguém que vi como minha amiga,
E que depois quando mas próximo fiquei,
Vi naqueles olhos algo diferente, eu nem sei.

Prestei tanta atenção quanto podia,
Pra ler naqueles olhos algo que ainda não sabia.
E como nada escapou, nem mesmo de seus lábios,
Criei coragem e lhe mandei esta mensagem...

Que lhe pergunta:

É você?

sábado, 30 de julho de 2005

Despedida

Na manhã cinzenta daquela segunda-feira entremeada por cabeças baixas, expressões indo da apatia a uma angústia velada, eram corpos então a manejarem objetos e a gesticularem com tal rispidez de movimentos que mais semelhanças tinham com máquinas do que com humanos, assim estavam todos ali embaixo da garoa insistente que se impunha desde o raiar do dia.
Murilo ia seguindo o fluxo, perdido em pensamentos enquanto, de forma inconsciente, traçava o percurso que partia de sua moradia no centro até o bairro nobre da cidade, antigo reduto dos imigrantes franceses do início do século, mas que hoje apenas ensaiava um pouco do brilho que tivera em sua época áurea.

De qualquer forma, ali ainda era um bonito lugar, ainda mais quando se levava em consideração que era onde vivia Monique, formosa garota que conhecera em uma palestra oferecida a profissionais da sua área, e que, após longas conversas sobre métodos e planejamento, finalmente se abrira a ele sobre sua verdadeira vocação para o extrovertimento, a ausência de pudor e, o que era mais notável, seu grande apreço pela liberdade de viver plenamente suas paixões.

*

Aquele verão foi insuficiente para tão intenso enlace entre os dois, que conseguiram remediar seus impedimentos (ela era noiva de um promissor e ausente gerente de marketing, e ele conseguia conciliar seu cargo pouco notório em um banco com seus dois filhos pequenos e sua mulher eternamente em crise). Assim então ficaram juntos por quase um ano, este ainda que mal notado ante a intensidade com que se relacionavam quando por ventura conseguiam se encontrar na bela casa de Monique naquela perfumada alameda de árvores centenárias e flores abundantes.

*

O que havia abreviado o romance ainda não conseguira ser de todo interpretado por Murilo, que ainda se perguntava o motivo enquanto seguia a passos lentos já adentrando pelo caminho que em tantas ocasiões havia cruzado com a maior das emoções, mas agora paradoxalmente pesando um vazio certamente difícil de suportar.

O fato é que há algumas semanas apenas, todos os seus sonhos ruíram com um pequeno texto que havia sido escrito por Monique e deixado num dos bolsos de seu paletó quando do último encontro entre eles.

Nele lia-se nas letras firmes e de formas arredondadas algo que a caligrafia alegre tornava menos cruel do que, sua mente não tinha dúvidas, na verdade o era.

*

Bateu na porta com um toque fraco, algo inseguro quanto a revelar sua presença ali e, de costas para a casa que tão bem o acolhera no passado, sentia agora os passos de alguém se aproximando e logo girando a maçaneta para deixá-lo sentir pela fresta da porta a abrir-se o familiar perfume floral que o inundou de imediato com sensações e lembranças que o fizeram até ficar sem fôlego.

E foi assim que, sem ao menos tentar qualquer movimento que o pusesse de frente àquela exuberante jovem que certamente mantinha os belos olhos verdes nele, começou a falar o que tinha preso em sua garganta por tanto tempo.
Foi curto e incisivo, disso não duvidou no momento em que, sem olhar para trás foi embora e nem mesmo pelo resto de sua vida.

*

Enquanto que abraçou e reteve em suas lembranças aquele derradeiro discurso, não lhe foi possível obter em sua mente a imagem dela, uma linda garota chamada Monique ali postada com uma expressão de infelicidade que haveria de, naquele momento, conseguir tingir de cinza toda a alameda florida de seu bairro, senão até mesmo o mundo inteiro, assim também não pôde ouvir pela primeira e última vez da voz dela o que lhe tinha escrito naquele malfadado bilhete.

Com lágrimas no olhos, vendo aquele que tornara sua vida melhor partir, ela apenas sussurrou uma única vez, e somente o vento lhe ouviu :

- Eu te amo.

quarta-feira, 18 de maio de 2005

Pacto

Até mesmo seu amigo mais próximo relutou em contar e somente numa noite de farra, após muitas cervejas, é que se dispôs a revelar para Rodrigo o que todos já sabiam : o nome daquela garota era encrenca.

Mas até aquele fim-de-semana, num barzinho qualquer do bairro, mesmo depois de muito tentar perguntando aqui e ali pro pessoal conhecido, ainda assim não havia conseguido saber ao menos o nome e quanto o mais uma ficha mais detalhada daquela gata incrível que havia aparecido do nada e que ali estava sozinha numa mesa a tomar lentamente uma dose de algo quente enquanto acompanhava com olhos intensos a banda que tocava um som animado naquela fria noite de inverno.

Aproximou-se dela num momento mais calmo e tentou puxar alguma conversa, tipo "puxa, você é mesmo linda demais e eu preciso ao menos saber teu nome para te chamar nos meus sonhos...", claro que não colou e, quando o silêncio dela já o desanimara demais para mantê-lo ali, Rodrigo já quase saindo porta afora pôde ouvir a voz que o tocou n'alma e o aprisionou para sempre :

- Você acredita em amor eterno ? - Foi então a primeira coisa que ouviu de Priscila.

*

Mas saber o nome dela não foi a coisa mais difícil para Rodrigo, que até então não havia se preocupado muito com as garotas que tivera, contanto que conseguisse lembrar de seus rostos quando por acaso quisesse ligar para elas.
E então aparece aquela criatura diferente de todas as outras (isso mesmo, o velho lugar-comum) e confunde sua cabeça toda, não deixando mais que pensasse em outra coisa que não nela, e ainda por cima sem saber como encontrá-la, pois desde aquele dia no barzinho, onde ficara hipnotizado só de ouvir Priscila lhe falar (numa proximidade deliciosamente perigosa), sobre coisas estranhas e diferentes, entre outras que ele nem prestara atenção absorto que estava naquela voz suave e na boca carnuda que sensualmente dava forma as suas palavras; desde aquele dia nunca mais a encontrara...

... até o fim-de-semana seguinte, quando largou tudo o que estava fazendo (ou seja, o violão, o cigarro e a latinha de cerveja já quase vazia) e foi ver o racha que sempre acontecia na avenida principal lá da cidade.

*

Não teve dúvidas de que era ela a garota de jeans bem justo e uma camiseta marcante onde se lia "Dust in the Wind".Chegou perto dela e daí prá frente foi tudo muito rápido, uma sucessão de olhares, toques e beijos que só terminaram lá pelas duas da manhã, quando os dois nus no sofá de sua casa ouviam agora o Kansas repetir a mensagem já conhecida de Priscila enquanto repartiam uma cerveja gelada direto do gargalo.

- ...um pacto... - Priscila diz pra Rodrigo que se espreguiça, já meio cansado pela farra dos dois.
- O que você disse? - Agora ele se ergue e procura por um maço de cigarros nos bolsos da jaqueta.
- Eu disse que devíamos fazer um pacto - repete Priscila, ainda nua e com os bicos dos seios eriçados pelo frio que pela janela da sala entrava e envolvia o ambiente. - Proponho que a gente prometa sermos somente um do outro, e também que estejamos sempre próximos, pelo resto de nossas vidas, e até mesmo além dela ...

*

Lembra-se dessa conversa nitidamente, apesar da situação atual estar elevando sua adrenalina à mil, inclusive recorda-se que foi um tanto o quanto evasivo no que falou em seguida, mesmo que ainda assim ela o tenha abraçado e beijado até recomeçarem a transa com nova energia, talvez para assim selar o acordo que ela propôra.
Consegue avançar o filme de sua memória para algum tempo depois dessa noite, precisamente alguns meses depois, quando Priscila entrara em sua casa totalmente histérica e descontrolada, derrubando coisas por onde passava e chutando o que já estava caído, enquanto resfolegante gritava uma mesma frase incessante : "por quê, por quê? Por quê você fez isso comigo?
Claro que ele sabia o que havia feito, afinal abandonar sua garota por vários dias e depois ser surpreendido por ela enquanto passeia de moto com outra não é algo que se esqueça facilmente. Só não havia tido oportunidade de discutir sobre o assunto, pelo menos até aquele momento...

...não fosse o detalhe que Priscila, no instante em que Rodrigo perdia-se em lembranças, simplesmente tirou de sua bolsa uma pistola preta que tanto tinha de imponente o que deveria ter de letal e que ela não demorou em demonstrar, fazendo um único disparo que deixou um furo bem no centro do travesseiro que havia na cama, este espirrando espuma prá todos os lados enquanto ele se jogava ao chão, então em total confusão.

*

Quisera ele talvez não ter se erguido tão rapidamente, ou ao menos não ter reparado na faca brilhante que naquele mesmo dia pegou pra cortar alguma coisa sem importância e depois deixou por ali. O fato é que sem nem mesmo se dar conta, de súbito pulou atrás de Priscila com a faca em uma das mãos e pelas suas costas penetrou seu corpo de uma forma que não imaginou ser tão... erótica. Golpeou mais algumas vezes, experimentando partes e ângulos que o deixaram perceber por entre seus longos cabelos, olhos que pareciam agora lhe fazer novas perguntas enquanto mantiam-se bem abertos, tamanho o espanto. A arma escapara das mãos dela e caía próxima de um vaso, sendo que a bolsa era arremessada para frente enquanto seu corpo já quase sem vida caia com um baque suave ao longo do corredor da casa.

*

Isso fora a dois dias, não sabe ao certo. Tudo o que lembra é de haver prosseguido com o ritual de perfuração com a faca em cima do corpo então tombado daquela menina que tanto tinha lhe tomado a atenção, mas que no momento surpreendia somente pela profusão de sangue que ora escorria aqui e mesmo jorrava acolá, quando sua faca trespassava alguma veia ou artéria. Recorda-se de haver tentado separar partes do corpo, como a desfazer a essência humana que as formas daquele corpo despido ainda insistiam em mostrar, mas, ante o fracasso na empreitada, pegou então um serrote de sua caixa de ferramentas e porfim realizou o intento.

*

De onde está sentado, no chão da cozinha, consegue agora perceber os pingos vermelho-vivos que escorrem lentamente da base da geladeira, calmamente denunciando o ato que lhe tomara várias horas daquele dia fatídico, onde após terminado o esquartejamento, havia guardado em vários potes, pedaços e mais pedaços de diversas formas e texturas (misturando-se assim pele, cabelos, ossos e carne-viva) do ser que fôra Priscila, e ainda, dá-se conta que um único naco de carne já bastante mastigado em suas mãos pode muito bem justificar o gosto viscoso e adocicado de sangue em sua boca. Lá fora se ouve ao longe os sons da noite, gatos e cachorros, carros e pessoas e tudo o mais que é urbano...

... e ficando cada vez mais e mais alto, são ouvidos também os sons de passos firmes e decididos de prováveis policiais que algum vizinho tenha chamado, e assim, enquanto olha a Lua enquadrada pelo vitrô na parede próxima pensa que de uma forma bem particular conseguiu cumprir o desejo de Priscila de estarem unidos pra todo o sempre.

segunda-feira, 1 de março de 2004

Apenas mais uma recordação

E então, quando finalmente decidi ligar para ela, não foi sem espanto que ouvi do outro lado da linha (e do mundo, se você levar em consideração que eu estava aqui em Ribeirão e ela agora em Porto das Andorinhas, vejam só), sua voz suave mas ainda segura me dizendo um "alô, quem fala" após esses confusos seis meses de separação involuntária (de minha parte, ao menos) depois que ela subitamente decidiu mudar o rumo de sua vida.

O susto foi seguido pela queda de um copo com dois dedos de conhaque que eu bebericava (agora e de vez em quando, numa freqüência crescente), sendo que rapidamente joguei uma blusa qualquer que estava por ali, tentando tolamente minimizar o desastre.

- Alô, Cláudia? Sou eu, o Marcelo... - nada convicto, até aqui.

- Oi Ma, há quanto tempo, hein? O que você tem feito por aí, como está Ribeirão? Puxa, que saudade!

- Tá na mesma Cláudia, claro que já nem tão alegre depois que você se foi...

- Ah, não fala assim Marcelo, a gente já discutiu isso pra caramba antes. Mas e aí, tá na faculdade ainda, parou de fumar finalmente?

- Até que resolvi essas coisas, mas só que ao contrário: parei a "facul", mas tô fumando que nem um condenado... mas me fala, e você, como vai aí com o "Pedrinho" ?

- Do jeito que você fala deu pra ver que ainda não aceitou meu lance com o Pedro Paulo, mas saiba que tá indo super bem nosso negócio de artesanato aqui na cidade, inclusive estamos pensando em abrir mais uma lojinha até o final do ano.

- É bom saber que a infelicidade de uns não necessariamente é a mesma para outros...

- Olha aqui Marcelo, acho que você não deveria perder seu tempo ligando se é só pra me ofender, então...

- Não, não Cláudia, não desliga, vai. É que nesses dias tenho pensado muito em nós e em tudo o que rolou, aquelas nossas noites juntos e tal, e o lance é que eu queria te pedir algo...

- O quê Marcelo?

- Pensando agora parece loucura, mas a verdade é que eu queria uma lembrança sua, mas não uma coisa qualquer, tem que ser algo especial, como você foi (e ainda é) prá mim...

Achei que não teria coragem para prosseguir, e quando aqueles poucos segundos de silêncio já haviam se transformado numa boa desculpa para desligar o telefone, aquela mesma voz que já me acalmara os ânimos em tantos momentos difíceis, agora vinha a mim como que a aprovar sem prévia avaliação a doideira que eu estava prestes a cometer.

- O que 'cê qué, Ma? Fala que você me deixou curiosa...

Então era tarde para voltar atrás, e como não havia realmente nenhuma justificativa para o que eu iria dizer em seguida, resolvi evitar rodeios e fui direto ao ponto:

- Cláudia, meu amor, eu queria que você me enviasse aquela foto que eu tirei de você nua naquele reveillon que passamos em Ilha Bela.

Pronto, estava dito. Agora imagens surgiam em meu cérebro atormentado, sendo elas uma colagem de diabinhos e labaredas incandescentes misturando-se com as ondas do mar de um entardecer deslumbrante onde uma garota de cabelos longos a confundir-se com a areia da praia estava então a despir-se inocentemente, deixando sua roupa a mercê da vontade do mar como se estas fossem oferendas a algum santo.

Claro que aquilo fora uma brincadeira repentina, dessas que logo se desfazem antes de haver algum mal-entendido. E assim, tudo o que pude fazer naquele breve (mas real) momento fora dar a minha grande paixão minha camisa para que ela pudesse cobrir-se, mas claro que antes houvera tempo para eu bater uma única foto com sua própria máquina que eu segurava, então. E assim aqui estou eu querendo uma pequena brecha no tempo para rever um momento tão marcante em minha vida, mas hesitante quanto a acreditar no sucesso dessa ousada empreitada.

Já me distanciava em novos devaneios quando fui chamado de volta à realidade. Era a Cláudia, e ela sim foi direta na sua não tão curta (e agora não duvido derradeira) resposta:

- Marcelo, você sabe que a gente se curtiu muito e que aqueles tempos foram mesmo maravilhosos, mas quero te contar algo que não te disse antes, o fato é que justamente aquela foto foi quem nos separou, pois o Pedro estava passando pela praia no dia em que ela foi tirada, e depois disso ele começou a perguntar por mim às minhas amigas até que um dia eu conversei com ele e senti uma atração estranha por aquele cara que dizia que minha imagem nua naquela praia tornara-se inesquecível para ele. Em princípio fomos só amigos, mas depois não deu mais... e o resto você sabe, né? Então como eu poderia dar a você algo que tão corajosamente fora conquistado pelo cara que eu gosto tanto, hein?

Ela desligou em seguida, mas eu nem percebi se ela despediu-se ou não, o negócio é que eu estava agora realmente confuso e muito, mas muito magoado mesmo. Achei que depois de adulto não haveria mais espaço para ilusões, mas também não para decepções como esta. E assim fiquei sem a foto e já não possuía mais a lembrança.

Há, há, há, te peguei , disse o esperto ao tolo. Bom, ao menos ainda sobrou algum conhaque, e eu sei que ele vai cumprir tudo aquilo do que é capaz de fazer por mim.

sábado, 3 de janeiro de 2004

28 de Outubro

Ela, uma morena de longos cabelos crespos e vivos olhos verdes, e eu apenas o "eu" de sempre, talvez apenas um pouco menos experiente e muito mais impressionável do que hoje.

Ainda sim, lembro com o mesmo aperto no coração e um fogo crescente subindo à minha cabeça quando me recordo de tais fatos.

Era uma tarde como outras, onde uma doce brisa se interpunha a uma tarde de calor tropical daquelas que nunca nos atrevemos a questionar o mérito por tal dádiva da natureza, como se o fato de sermos jovens brasileiros automaticamente nos validava a tal honra. E lá estava eu ao lado de Simone, e mesmo com a nossa diferença de idades (eu um adolescente com treze e ela uma jovem mãe no alto de seus dezoito anos), já há horas inapercebidas seguíamos a conversar sobre tudo e sobre todos, até mesmo e principalmente sobre tudo o que ainda não sabíamos, mas que muito prazer nos dava aos poucos ir descobrindo suas verdades e seus mistérios.

Eu já muito satisfeito com mais aquele delicioso contato travado com minha (não revelada) musa inspiradora preparava-me para partir quando ouvi aquela pergunta que há muito me pertence e ainda hoje ouço seu eco:
- Gostaria de saber como seria fazer amor com você... - Foi assim que de súbito Simone me inquiriu, com sua doce e rouca voz feminina.

Aquilo teve em mim um efeito entorpecente, onde o único pensamento que me foi possível foi imaginar a mim como um farol de trânsito, naquela hora totalmente em pane, passando do verde ao vermelho e trocando este pelo amarelo indiscriminadamente tal era o desvairo.

Não posso dizer que voltei totalmente ao meu normal quando finalmente respondi-lhe algo, afinal meu balbuciar pode ter sido interpretado de diversas formas pela linda garota à minha frente.

E aqui abro um parêntese a esse ponto, como era bela Simone... Seus olhos brilhavam tanto que eu tinha que por diversas vezes ficar a admirá-los para assim poder definir-lhes a cor; seus cabelos transformavam-na em uma amazona urbana, e só a imposição do homem domesticava em trajes contidos aqueles traços e formas generosas que tanto prazer me davam em poucos e breves momentos em que a abraçava entre um e outro cumprimento.

Recordo-me também do espanto que me causava perceber quando estávamos próximos que, apesar de todos os meus pensamentos secretos sobre essa pessoa tão cara a mim, que ela na verdade era da mesma estatura do que eu (citando que aos treze anos era eu ainda menor do que meus meros um metro e setenta atuais).
Mas o fato é que naquele dia inesquecível (a mim, ao menos), respondi-lhe por fim àquela pergunta que me fora proferida tão repentinamente. Acho que simplesmente disse-lhe... que não sabia.

Também ela não disse mais nada sobre o assunto, não na mesma hora, pois breve saí dali tolo e confuso, e nem mesmo nos dias seguintes a ele naquele último ano em que a vi.

Várias mudanças se passaram em minha vida, e sempre mantive guardada a boa lembrança daquela mulher maravilhosa que povoava meus pensamentos e mesmo meus dias, quando o ocaso me deixava entrever sua presença em um ou outro lugar de nossa pequena cidade. Mas já não tínhamos a mesma cumplicidade do passado e assim melancolicamente eu me despedia mudamente dela após tais encontros.

E hoje como em vários outros anos, quando chega o vigésimo oitavo dia deste mesmo outubro marcado a caneta no calendário, retomo o fio-da-meada de pensamentos diversos, sobre o que foi e o que não foi e até o que poderia ter sido e, enquanto concluo que tão feliz sou com aquele (numa atualmente cética definição) possível envolvimento sexual irrealizado, mas ainda assim inesquecível penso à parte n'algum recôndito de minha mente obsessiva que realmente nunca saberei ao certo o que possuí e o que disto perdi.

Termino esta lembrando um poema que lhe fiz naqueles dia:

Para Simone
(algum dia em 1987)

Podia voar, mas queria andar.
Podia seguir, mas preferiu ficar.
E era sempre assim:
"crescer, viver, amar"

Mas em um dia que veio, ficou a pensar:
"Por que não posso ir, mas sim ter que ficar?"
Então decidiu partir, e neste dia foi embora.
Disse: "Ainda é cedo, logo não demoro".

Foi embora triste, mas com uma alegria:
"Se não fossem as idas, onde tudo ficaria?"
E quando lá chegou, parou, olhou e por fim gostou.
Eu já nem sei o que mais aconteceu,
Hoje eu morri e ainda ela não voltou.

terça-feira, 30 de dezembro de 2003

Resoluções de ano-novo

Só tinha uma coisa na cabeça, aquele cara. Ia resolver aquilo de qualquer jeito.
O tempo era curto, e pensando em como adiou a coisa só o fez sentir-se mais incapaz. Logo estava a recordar-se de todos aqueles dias passados, desde quando resolvêra por fim em algo que vinha atormentando sua mente por tanto tempo.

Já não era tão jovem, e esse fato o perturbara nem tanto pelas suas conseqüências físicas, já que aparentava razoável saúde, mas sim pelo seu estado de espírito que andava a muito inquieto por todas aquelas mudanças que tão sutilmente se instalaram em seu ser, e que não as percebera até que já não fosse possível mais agarrar-se ao passado desesperadamente tal como um náufrago a uma bóia perdida ao mar. Então era isso, nada mais de amigos, não mais paixões, nem aquele viço diante de oportunidades novas e vibrantes que por toda a infância e adolescência circularam diante de si e daqueles que compartilharam consigo da melhor fase de sua vida.

Claro que a juventude em sua fase pré-adulta proporcionou-lhe muitas experiências, mas tal qual amor platônico que se concretiza, tais acontecimentos acabaram por trazer indesejáveis efeitos colaterais, tais como a mentira justificada, a cobiça, a competição desmedida, e mesmo o cinismo por tudo ao seu redor, sendo que por sua natureza de insistente permanência, tais mudanças acabaram por destruir aquele ser que ele era e que muita saudade deixou por sua partida.

Então já é hora, o ano quase a findar, e entre fogos de artifício e gritos e risos da multidão dispersa pela cidade a brindar o fim de mais um ano em poucos minutos, agora aquela figura triste a contrastar sua aparência apagada e sombria pela de outras pessoas, jovens ou velhas, põe-se então a lembrar pela última vez a situação que se deu a exato um ano atrás quando se encontrava em igual estado emocional.

Era dezembro passado, e, do alto de um prédio, olhava a cidade onde nasceu naquele mesmo grande abc de lutas e mudanças; pensava assim então que nesse mundo vive-se só prá isso mesmo: ir de encontro às dificuldades e batalhar por cada segundo em que se consegue manter a cabeça fora d'água, respirando o precioso ar... . Refletiu então, estava ali perfeita analogia, respirar é o que resume estar vivo, de um jeito ou de outro, não importa que tal vitória apague-se diante da mais certa das verdades, que já o sabemos: morreremos então.

E assim foi que, amarga paródia talvez, resolveu que aquela seria sua resolução de ano-novo para o 2003 que já quase ia chegando: ainda naquele ano deixaria de viver, cessaria de respirar e levaria (se assim fosse-lhe permitido) todas as suas tão doces lembranças de seu passado fugidio para um outro lugar.

Tais minutos preciosos foram-lhe roubados com todos estes pensamentos últimos, então sem mais perda de tempo, enquanto ouvia ao longe o coro da contagem regressiva, já na casa do 6 para o 5 e descendo ritmado, o decidido rapaz tira da jaqueta um pequeno revólver e, despedindo-se do ano e também do mundo, dá um único tiro em sua têmpora, que confunde-se com o estampido de uma champanhe aberta, mas logo perde-se no meio de toda aquela vibração crescente de pessoas e da própria cidade à comemorar cheios de expectativas o ano que chegou.

quarta-feira, 24 de setembro de 2003

Barraquinha do Sued

Amor não ti forneço não, moça. Estamos em falta.

Sabe o que é, o produto é caro e nem sempre é confiável de onde vem. Tem muito malfeitor aí vendendo ele falsificado, passando desejo e obsessão como se fosse o dito.

Isso sem falar naqueles que pegam só um pouquinho de amor e misturam com um monte de porcarias, desde carinho por piedade e medo da solidão até químicas mais fortes e destrutivas como interesses financeiros e uma mistura forte de inveja e complexo de inferioridade.

Mas por que a senhorita não leva um pouco de passatempos inócuos ou lembranças da infância, enquanto eu ponho teu nome no caderninho de encomendas ? Também recomendo a essência de canções de momentos inesquecíveis, que tem tido boa saída.

Olha, você vai levar um ideal só ? Recomendo levar mais um, sabe como é, nunca se tem um ideal á mão quando se precisa dele.

Os sonhos pro futuro tão fresquinhos, sim. Não, não são os mesmos do outro dia, não. É que eles são plantados sempre do mesmo jeito e quando colhidos são feitos os mesmos maços. Pode levar sem surprêsas.

Olha alí, descendo do ônibus, o seu Carlos. Toda quinta ele pára aqui e compra um pouco de alegria de viver. Nem sei se usa tudo, não dá prá perguntar pois ele sempre tá apressado e reclamando de alguma coisa. Pobre coitado...

Eu ? Se eu consumo minhas mercadorias ? A moça acha que eu recomendaria sem conhecer o que vendo ? Pois saiba que eu provo de tudo (bom, menos o extrato de ódio pelo próximo, que me queima o estômago a noite toda se eu tomar) e eu digo que a linda garota pode levar sem medo este elixir de bons pensamentos que ele será ótimo para sua saúde (não que você pareça doente, uma moça tão formosa).

É, sim. Já estou aqui nesse ponto à um bom tempo (nem me recordo mais dos primeiros fregueses), mas ainda acho muito bom poder levar um pouco auxílio à quem me procura.

Tome aqui com suas compras um saquinho de sexo apaixonado da juventude e outro com fervor religioso para um bom chá no fim da tarde (pode tomar qualquer um dois que, neste inverno, servirão muito bem para acalentar o frio d'alma).

E lembre-se de recomendar aos seus conhecidos a barraquinha do Sued, que está sempre aberta às suas necessidades. Até logo.

sábado, 24 de maio de 2003

Seguindo o caminho...

Subiu a ladeira rumo ao fim do caminho, aquele lugar sereno de onde podia-se ver até o fim do universo, se assim se desejasse. Parou por ali o rapaz nem tão jovem e, ainda pensativo, pôs-se a contemplar o céu noturno.

Por um bom par de horas esteve imóvel à relembrar e divagar por lembranças e sensações vividas, desde coisas pequenas como uma brincadeira de pega até outras que causavam um aperto forte no coração, como quando viu o olhar de reconhecimento que no primeiro contato sua filhinha então recém-nascida lhe deu.

Passeou por momentos de prazer e também desventuras diversas que fizeram-se companheiras sempre presentes nestes últimos 37 anos de sua vida.

E foi assim, nessa retrospectiva desordenada de momentos e situações díspares que então chegou a um ponto referencial, aquele acontecimento que dividiu sua vida tão cheia de gostos e cores, transformando-a por fim num emaranhado de pêlos cuja bola se formara em sua garganta sufocando um desesperado grito por socorro.

Perdera seu grande amor ou, mais do que isso, perdera o apreço por tudo o que este representava e que, se ainda podia se lembrar, se resumia tão somente ao gosto pela vida.

E assim, por conseguinte, foi perdendo tudo o que disso dependia e justificava, como a esposa que o deixara por um outro qualquer, sua filha que teve na mãe maiores chances de continuar recebendo tão necessário afeto, e dai por diante o emprego, os amigos, posses e lembranças, estas últimas ressurgindo uma ou outra apenas num fraco suspiro, como a perguntar - ainda se lembra de mim ? - E assim foi até aqui.

Defronte a lua cheia quase palpável, ali parado no fim-do-caminho e na beira do penhasco, fica assim já não tão jovem homem à pensar e pensar, não tão certo quanto à pular e confrontar o rumo que sua vida tomou ou se para e espera algo que vire a página e finde este capítulo tão amargo de sua vida tão cheia de contrastes."

domingo, 1 de dezembro de 2002

Rupturas

Tenho até medo de escrever depois de algumas cervejas, pois acho que dentre os efeitos desta bebida (além do porre, do vexame, da exaltação aos sonhos impossíveis, e mesmo desde o propício "hugo" até o culminar de uma bela ressaca), imagino que ela nos faça mais ... sinceros. E, cá entre nós, quem de vocês que (possivelmente) me ouve teve a felicidade de lucrar com tal gesto ultrapassado de humanidade? Se abrindo à alguém, ou a si mesmo até, encarando a verdade e soltando na cara desta um "tapa" tal, que esta não pudesse deixar de transparecer em quem a visse, toda a essência que tão sôfregamente você por fim liberou ao mundo, talvez só prá dizer à eles (à nós) que você sofre, ou que é feliz, não importando de que meios você se valeu para atingir estes objetivos (ou conseqüências, caso indesejáveis acontecimentos), mas o ponto é que você finalmente se abriu, não pensando no que resultaria deste gesto (despojado em sua aparência até, mas mesmo assim ousado) e como lucro tens em mãos uma variedade enorme de outras possibilidades sobre o que pensar e como agir, seja pelo sorriso alegre de um transeunte que correspondeu à um cumprimento teu, ou até a sensação de desagrado pairando no ar quando você finalmente diz para tua parceira (ou parceiro) que não dá mais...

Pois é, era mais ou menos sobre isso o que eu queria dizer depois de dar muitas voltas, me concentrei e me despi do medo para poder anunciar que sim, houveram algumas rupturas, mas também para deixar claro estar ansioso pelos possíveis sorrisos e mesmo gestos amáveis daqueles que talvez num futuro breve, estarão presentes entre nós.

quarta-feira, 2 de junho de 1999

Papel Queimado

Papel queimado,
Pelos céus esvoaçando.
E seus pequenos fragmentos
Se formando e se soltando.
A dançar curiosa melodia,
Onde o vento é seu maestro.

E quando então
Me proponho segurá-lo,
Eis que... surpresa!
Tal coisa não me é permitida,
Visto que são livres,
Estes singulares seres do Universo.

sexta-feira, 7 de maio de 1999

Numa noite dessas

Meia-noite. Vinha caminhando pela rua sonolento, cansado, quando de repente ouvi umas pisadas. Olhei para trás e foi aí que a vi. Não digo que foi algo instantâneo, pois até ali já eram mais de sete horas quase ininterruptas de trabalho, mas o fato é que a surpresa me pôs todo desperto e atento.

Em princípio, não notou nem á mim nem a importância que dei á sua caminhada naquele princípio de madrugada fria de julho, mas alguém com aqueles exóticos cabelos de um ruivo quase em chamas não deveria realmente se importar com um sujeito carregando um sax desajeitadamente pela metrópole.

- Olá... - me adiantei, após mudar meu rumo - você é a Aline, não é ? - iniciei, um pouco resfolegante.
E, num momento interminável em que sua expressão passou da mais bela serenidade para o puro terror e, por fim, estática ficou numa curiosa perplexidade, ela então me respondeu :
- Não ! E não converso com estranhos, também. Até logo !

Deixei de acompanhá-la e, sob um seco luar de inverno, parado ali enquanto as luzes dos prédios, dos carros e da noite ficavam a dançar diante dos meus olhos cansados, concluí assim (bem á contra-gosto, devo dizer) que o que em princípio me pareceu o reencontro com um grande (se não o único) amor do passado, afinal demonstrou apenas que eu devia estar realmente muito, muito cansado.

quarta-feira, 16 de setembro de 1998

Caminhando

A decisão é rápida, e se põe a caminhar.
Cada passo é uma sentença, uma resolução de vida.
E da banalidade de cada lição, uma nova pessoa surge.
Novos rumos guiam-lhe, pois, numa objetiva direção, que obviamente o levará á morte, mas isso não importa realmente. Seus anseios são outros, agora.

Olhando a imensidão da massa celeste, de si próprio não julga mais a significância, vê apenas a beleza do imensurável.
E, quando não pode conceituar sentimentos, resigna-se apenas em ser parte deste projeto de sonhos.

(... e passam-se assim os anos...)

E agora que o tempo passou, mesmo sem nunca ter ido, e as grandes verdades esvaem-se ante a lembrança dos bons momentos vividos, este homem, agora um velho ser que resiste ao seu próprio corpo que agoniza, chora não pelo tempo que passou, andando até, mas somente pelo infinito tempo em que será uma inexistência, apenas uma ou outra marca no chão, de passos incompletos rumo ao fim do caminho neste universo de tão bela aparência.

sábado, 27 de janeiro de 1996

Cidade grande. O tempo. o homem.

Como um vistoso farol a traçar meu caminho, foi aquele imenso prédio iluminado primeiramente por mim avistado.

Confesso ter demonstrado uma certa apatia para com aquele lugar (nada de fortes impressões como me conta o Caetano em Sampa, agora em minha casa), mas também são mais de vinte anos que me separam daquela época para minha forma de pensar atual.

Remexendo em minha mente recordo ainda as primeiras palavras que na metrópole ouvi:
- Tem um fogo aí ? - Era um passante que me abordava.

E eu que mal ia as festas que no interior sempre aconteciam, me perguntei irado: como alguém podia me considerar um fumante ?!

Pois daí pra chegar a ter conhecimento dos tais "fatos da vida", foi toda uma jornada ralo abaixo, como minha adorável avó já sentenciava sobre as más atitudes.

E é nisso, pois, que agora eu me concentro; será que minha atitude próxima estará correta?

Bom, onde palavras não substituem um gesto, deixo aqui este bilhete que, acredito, daqui á pouco estará manchado pelo sangue que este revólver em minhas mãos irá libertar de meu coração, e ainda, Caetano irá me dizer pela última vez que achou de mau gosto, de mau gosto.

Santo André, 27 de Janeiro de 1.996.

domingo, 20 de agosto de 1995

Musa

Helena era uma loirinha de simpáticos olhos azuis, e que tinha por costume ao acordar sempre olhar para o oeste.

Mas tinha outras manias (vim a descobrir lendo um diário que ela escondia sob o travesseiro), como o de ficar horas e horas á observar o movimento das pessoas e coisas lá na cidade onde morávamos. Isso foi ela quem escreveu:

"... e vendo carros como pontinhos cintilantes na noite que aponta, os olhos mareados pelas lágrimas ante um sentimento desconhecido até, mas não menos vivido que agora aflora os sentidos deste ser solitário que o meu corpo habita."

Confesso que eu admirava aquela garota, não só sua beleza mas também a leveza de suas atitudes, seus gestos e sua alegria de viver.
Um dia ela chegou para mim e entregou-me um papelzinho perfumado, desses que toda menina tem, e que dizia:

"Ontem pensei em você e foram estas palavras que me vieram:
Deixa-me correr, selvagem, ó noite agora plena;
Liberta-me, ventre sagrado, de teu manto
para me perder por estes campos de brisa primaveril,
onde a lua ilumina o despertar deste ser/sentimento
que por força da palavra tomou o nome liberdade.
Pois é assim que te vejo, e não me repreendo em dizer que te amo."

Então imagino que vocês que me ouvem possam visualizar a doçura de pessoa que eu tinha por enamorada, e não é só isso. Meu coração dizia ainda mais do que um dia talvez poderei decifrar. Naqueles dias eu amava Helena.

sexta-feira, 18 de junho de 1993

O minuto que antecede a queda (por ele mesmo quando se viu perdido)

Sobre um amor que se foi.

A paisagem torna-se viva, pois, sua única companheira.

A escuridão que antecede o temporal se compara ao sentimento agora perdido, mais que há pouco contrastava sendo na forma das negras nuvens das desvirtudes humanas ante os brilhos intensos que o afeto nascente lutava em manifestar.

Um copo de vinho cumpre sua função desmerecida de entorpecer/ludibriar o ser e causar a sensação única que é a adoração àquela pessoa que tanto nos faz sofrer.

Mas tudo passa e passa assim o torpor da embriaguez/tempestade fazendo-nos ver por fim que somos apenas este reflexo no espelho que tal apatia nos causa, e também que não temos alguém que seja tão superior a ponto de nos dar infinita segurança aos infortúnios dessa vida. (E, afinal, que futuro tem um relacionamento que somente na separação se sensibiliza ?).

Sofro até, mas não me considero fraco, pois não renego a este sentimento confuso que unicamente alimenta-me a alma.

sexta-feira, 29 de janeiro de 1993

O Amor (L'amour)

Mal sequer de um amor refeito,
Foi-se um homem a uma cilada.
De uma jovem, lindos peitos.
Com um sorriso e uma piscada.

E assim segue a noite,
antes serena e suave.
agora suada e ofegante
por ter sido maculada
pela paixão dos amantes.

Já passava a madrugada,
E o sol a alcançava.
Quando um homem entorpecido,
De uma casa se afastava.

Lá dentro a cantarolar,
a ninfeta, se vestindo.
Os quadris a rebolar,
Nádegas de um corpo lindo.

Que a pouco se torcia,
Ante frenesi incontido.
De um pênis que sentia,
Dentro de seu "escoderijo".

E tendo atrás seu rosado,
Orifício que ardia.
Pensou ela: "Estou feliz!,
Pelo gozo e a alegria".

Agora as pontas de uma escova,
Seus cabelos percorriam.
De fios longos, lindos, loiros.
Que pelos seios escorriam.

Um reflexo no espelho,
De redondos, olhos verdes.
Boca um "o", púbis sem pêlos.
Esta era, pois, Mercedes.

domingo, 21 de abril de 1991

Aline

Aline, você nem imagina...
Será que te passou pela cabeça uma trama
para me deixar assim tão louco por você ?
E de teus beijos (em sonhos),
teu puro contato num único mísero toque.
Tão coincidentes quanto esse amor que agora aflora,
Seria então por conta desta artimanha
tão antiga quanto a razão humana,
que silenciosamente agora você "grita" vitória ante a mim,
pobre vítima deste teu veneno doce e sensual ?

Este e uma infinidade de outros pensamentos
à questionarem-me e à si próprio suas veracidades,
desfilam em minha mente num único segundo que,
como agora, me encontro em tua presença.
Mas próprio de minha ínfima relevância,
apenas te sorrio, entre um "oi",
enquanto admiro sua cativante beleza.

segunda-feira, 2 de julho de 1990

O fim do corredor

Antes de tudo, algumas observações: Será sobre o fim de um corredor, será sobre um fim de corredor ou poderá ser no fim do corredor ?

Acho que não tenho realmente muita experiência em "fins-de-corredor" (e, diga-se de passagem, em descrições também), talvez até pela inexistência destes nos lugares onde morei.

A primeira imagem que se evoca á mim é a de uma região misteriosa (nem sempre, talvez só à noite), onde nossa visão não alcança e nossas pernas não se permitem percorrê-las.

Mas vejo também nestas trevas algo como uma porta. É, talvez uma dessas comuns, com olho mágico e uma campanhia ao lado para chamar seu morador (uma redundância, pois provavelmente irá morar alguém que você certamente não quer nem conhecer...)

Mas sabem como é, já dizia um velho sábio que o mistério se define e se reduz tão somente ao seu conteúdo, que imutavelmente é o desconhecido.

Então, junto a essa porta ouvem-se (ouço) sons. Sons desconhecidos para mim (se tenho dez anos, será que conheço todas as onomatopéias que o ser humano cria? Ou talvez com vinte, resumiria eu como sendo sendo apenas mais um casal na eterna/cansativa procura do (quem sabe) inalcançável amor.

Mas não tenho idade. Sou só idéias. Idéias e dúvidas (o que há afinal no fim do corredor?)

Já não sei se o tempo passa no ficar do meu dilema ou se para e me acompanha no correr dos meus pensamentos...

quinta-feira, 11 de janeiro de 1990

O Fogo que entrou por aquela janela

Procurei um tema. Vaguei pelas folhas que entre folhas de menor importância mostravam-se á mim naquela mesa ao canto. Encontrei a luz suprema! E tal qual impuro e indigno ser humano, duvidei de sua relevância. Segurei-me, porém, ás poucas esperanças que possuía e então conceituei-a (ali mesmo naquela mesa agora vazia). Senti sua presença. E, como na infância, quando o sentimento (intenso) se sobrepõe à razão (pouca), tudo o que descobri foi que havia encontrado. E o vento move mares, nuvens e lembranças. A água encobre tudo, mesmo o poderio do rico ou a humildade do pobre. Posso dizer então que é o fogo ardente e brilhante que não permite a visão de sua presença, cedendo-me apenas o calor de sua existência, partindo do vão de minha janela para entrar e abrir também as portas de meu coração, este gélido e mortificado ante o esquecimento que encobria a importância que você tem para mim. Falo do amor. Ah, sim. Há também a Terra... E é nela, pois, que há tempos eu vivo e esperando fico a pensar se mereço tal honra da personificação desta musa que meu coração possui.